As meninas da fanfarra.
Gostava de ter sido uma menina da fanfarra. Preferia ter sido a menina da fanfarra do que ter estudado piano até já não conseguir distinguir teclas brancas de pretas e ver tudo em tons de cinzento. As saias de pregas ainda me fascinam. Já não tenho idade para as usar, isso é certo.
Atrás das meninas da fanfarra vêm sempre os bombos. É um modo fascinante de nos amortecer a boca do estômago com o barulho e comandar o novo ritmo do coração. É quase o metrónomo das aulas de piano. É o som do tambor das tribos nos rituais. A procissão não deixa de ser um ritual...
Não tenho religião. Fui educada na fé cristã e sou irracionalmente curiosa por todas as religiões que existem no mundo, incluindo as ditas pagãs. Fui também educada na ciência e como cientista é quase doloroso pensar num deus racional por detrás de toda a fisiologia da natureza. Mas, na realidade, a natureza é toda ela tão perfeita que questiono verdadeiramente a existência de uma mente inteligente, engenhosa e criadora em tudo que existe. Sou, portanto, agnóstica: aquela que não é religiosa, mas não questiona a existência ou inexistência de deuses.
As procissões emocionam-me muito por outro motivo: porque sofrem as pessoas em nome de algo que não sabem se existe? Se ajuda? Se melhora a nossa vida ou, pelo contrário, se a piora se não formos devotos? O sentimento de devoção profunda daqueles que carregam o peso dos andores, daqueles que vão ao lado com garrafas de água, daqueles que vão descalços ou mesmo de joelhos. Tudo isso me emociona, mas não é porque acredite no mesmo que eles. É porque gostava, talvez, de acreditar em alguma coisa que me desse algum alento, que não estamos aqui só por estar e que temos uma missão nesta vida.
Uma vez fiz uma promessa que tenho que cumprir todos os anos. Tenho? Nada me obriga. Devo? Não acredito que deva alguma coisa a alguém. Acredito na ciência e na medicina. Se saio mais leve sempre que lá vou, todos os anos? Sim. Não sei porquê. Será isso a fé?